Psicodélico: Experiência portuguesa pode melhorar combate ao crack no Brasil, dizem especialistas

quinta-feira, 15 de março de 2012

Experiência portuguesa pode melhorar combate ao crack no Brasil, dizem especialistas

Foco deve ser o tratamento dos dependentes; analistas criticam operação na Cracolândia

No final dos anos 1990, quando o consumo de heroína ocupava as ruas de Portugal, o país decidiu tomar uma medida radical e polêmica: descriminalizou o consumo de toda e qualquer droga. O foco da ação do Poder Público deixou de ser a repressão policial ao consumo de entorpecentes, para privilegiar o tratamento de saúde e a assistência social aos usuários.


Hoje, o país é elogiado pelas estatísticas que apontam queda no uso de drogas. Para alguns analistas do fenômeno, a política portuguesa deveria servir de referência para o Brasil, por exemplo, na luta contra o crack, - em contraposição à repressão policial aos usuários da região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo.

Efe (06/01/2012)

Política de criminalização do usuário de crack no Brasil é criticada por especialistas portugueses

Mesmo que se resista à descriminalização, como é a posição oficial brasileira, os especialistas defendem que o importante é que a prisão não seja o recurso para tratar o consumidor. A forma, qualquer que ela seja, deve evitar a estigmatização do usuário, disse ao Opera Mundi João Goulão, presidente do IDT (Instituto da Droga e da Toxicodependência). O órgão, que fica sob a alçada do Ministério da Saúde, é o equivalente português da Senad (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas), do Brasil, subordinada ao Ministério da Justiça.

“Penso que a descriminalização não é condição sine qua non para a dissuasão. O que me parece essencial é que o contato do usuário com o sistema (penal ou outro) seja acompanhado por um olhar de profissionais da área da saúde e de apoio social, tendo em vista encontrar respostas para além da mera reclusão, que habitualmente não tem outros resultados que não sejam os do aumento da exclusão e estigmatização”, afirma Goulão.

Com a mudança da lei, em 2000, em vez de enfrentar um processo criminal, os flagrados com drogas para consumo próprio (a quantidade máxima é a necessária para até 10 dias) em Portugal respondem a um processo administrativo nas Comissões de Dissuasão de Toxicodependência.

Combate à estigmatização

As punições, quando ocorrem, são administrativas – não vão para a ficha criminal – e envolvem, por exemplo, impedimento de que o dependente exerça algumas profissões ou frequente determinados locais. Mas a maioria dos processos é suspensa. Assim, em 2010, 62% das decisões das comissões foram pela a suspensão dos processos de não-dependentes, 20% pela suspensão de processos de dependentes que se comprometeram com tratamento e 14% resultaram em punição.

A preocupação em evitar o estigma modela também o modo de operação. O consumidor pode pedir que as cartas sobre o processo não sejam enviadas para sua casa e o “julgamento” é feito em uma sala informal, sem colocá-lo na situação de réu, descreve Gleen Greenwald, constitucionalista norte-americano que escreveu um relatório sobre o modelo português para o Instituto Cato, publicado em 2009.



“A esfera dos procedimentos operativos que acompanha a descriminalização traduz-se numa ferramenta conceitual importante à diminuição da repressão do consumidor e reparadora no sentido de serem propostas novas abordagens ao consumidor/toxicodependente, considerando-se a hipótese de conduzi-lo para tratamento sem estigmatização ou punição”, defende Lúcia Dias, mestre em toxicodependência e patologias psicossociais e autora do livro Drogas em Portugal.

O que não significa que não haja repressão a quem trafica. Em 2010, a maioria (58%) dos presumíveis infratores detidos pela polícia é traficante-consumidor. Dos processos envolvendo indivíduos que acabaram considerados traficantes, 87% terminaram em condenação.

Reconstrução social

“Claro que há discriminação”, relatou Margarida Marques, de 57 anos, ex-dependente que hoje atua em uma associação de apoio aos usuários de drogas em Portugal. “Mas não foi isso que me levou a deixar o vício. O que me levou a procurar ajuda foi minha degradação em todos os níveis (fisico, social e espiritual)”. Atribuindo sua recuperação à religião e contrária às políticas de substituição de drogas, ela defende entretanto o apoio terapêutico do Estado ao dependente.

Para além da saúde, o modelo português investe na reconstrução da estrutura social do indivíduo buscando detectar que tipo de problemas individuais podem estar relacionados com o uso de drogas. Foram identificados 1.323 indivíduos com necessidades de apoio habitacional, sendo um terço deles solucionados -- percentual considerado baixo pelo IDT. Houve também atendimento de 43% dos 4.719 casos com necessidades de emprego, 26% dos 2.280 de formação profissional e 44% dos 1.965 de educação.

O trabalho de reinserção, afirmou Goulão, pode ser aplicado mesmo a populações problemáticas como as de consumidores de crack da Cracolândia. “É possível sempre. Claro que não conseguimos com todas as pessoas um sucesso pleno que teria como corolário: habitação, emprego etc., mas é sempre possível ajudar as pessoas mais desorganizadas a fazerem alguns progressos: nos hábitos de higiene, na aproximação com a família, na (re)aprendizagem da vida em grupo, a saberem onde acaba o seu espaço e começa o do ‘outro’”, explicou o presidente do IDT.

“Temos clubes de emprego onde se ensina a procurar anúncios nos jornais, a fazer um currículo, treinam-se as respostas a uma entrevista. Qualquer pequeno progresso é sentido por estas pessoas como um enorme ganho”, contou Goulão.

Referência

Em um artigo que analisa a intervenção planejada pelo Governo Federal em relação ao crack, a cientista política e fundadora do Instituto Igarapé, Ilona Szabo, traça um paralelo entre a crise da heroína na Europa e a de crack no Brasil. Ela sustenta que a saída de Portugal e outros países europeus foi sábia ao retirar “sanções criminais dos usuários como forma de abrir um canal direto para prestar assistência médica e social.”

“O modelo português é um primeiro passo para o Brasil, porque está bem estruturado e documentado”, diz Ilona, que também faz parte do secretariado da Comissão Global e Latino Americana de Políticas sobre Drogas. Nos relatórios do ano passado das comissões, o modelo punitivo em relação às drogas foi declarado falido e a guerra, perdida.

Para o grupo, do qual fazem parte figuras como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), Kofi Annan, métodos alternativos como o de Portugal deram melhores resultados do que a “Guerra às Drogas”. O texto global defende “a legalização e a regulamentação da maconha, o fim da criminalização dos usuários de todas as drogas, o investimento de recursos em pesquisa científica e o uso da repressão com ênfase nas estruturas criminosas e não nos cultivadores, mulas humanas e vendedores de pequenas quantidades de droga”.

Mesmo para o crack?

“Quanto mais perigosa a droga, mais sentido faz descriminalizar”, disse Glen Greenwald, que vive atualmente no Rio de Janeiro para apresentar as pesquisas que tem feito sobre o modelo português. Para ele, as realidades sociais e culturais dos dois países são bastante semelhantes – com pobreza, catolicismo, conservadorismo e poucos recursos por parte do governo – o que aponta que a política seria eficaz aqui como lá. “É mais eficaz tratar vício em droga como um problema de saúde do que um problema criminal. Isso é tão verdade no Brasil quanto é em Portugal".

Efe (06/01/2012)

Ação na Cracolândia enaltece "uma cultura de que o filho feio a gente esconde", diz especialista

“É um mecanismo de limpeza social (que está sendo feito em São Paulo)”, opinou Ilona Szabo, "uma opção fácil de tornar invisível o problema das drogas e não de resolvê-lo. É cruel, uma cultura de que o filho feio a gente esconde”.

Familiarizada com modelos internacionais de combate e tratamento de drogas, Ilona se diz incapaz de antever o resultado da política adotada no Brasil em função da falta de transparência sobre o tratamento que será dado aos usuários de drogas em termos de saúde e assistência social. “Meu medo é que nada disso exista e se esteja apenas levando essas pessoas para algum lugar e dopando. Sem plano e cuidado com reinserção o problema vai voltar e maior.”

A responsabilização dos profissionais da saúde e da assistência social quanto às ações adotadas com os usuários é um dos pontos fortes destacados por Ilona no modelo português.

Diferente das alternativas que deixam nas mãos dos policiais a definição de quem vai ou não para a delegacia por não preverem quantidade e nem terem protocolos de saúde definidos, nesse caso há um profissional que assina o cadastro, cujas informações são protegidas. “Uma comissão de profissionais é responsável pela vida de outra pessoa e assina isso, e os dados são recolhidos pelo assistente social, não pela polícia. O usuário sai do número e vira uma pessoa”.

É um mecanismo mais custoso e trabalhoso, mas visto por ela como mais eficaz. “A política que estamos empregando hoje é enxugar gelo e dar tiro no pé. Estamos muito atrasados e somos preconceituosos em relação ao tema. Aqui bandido bom é bandido morto, mas se não entendermos que a sociedade tem de cuidar de todos os cidadãos, todos somos afetados. Não preciso consumir para ser afetado”.

De baixo para cima

O modelo português começou de forma clandestina, diz o pesquisador Jorge Barbosa em seu artigo“A emergência da redução de danos em Portugal: da clandestinidade à legitimação política”. Nos anos 1980, os técnicos desenvolviam ações pontuais ligadas à saúde porque percebiam, no dia a dia, que faltava apoio nessa área. Foi na crise da heroína e com a explosão de casos de Aids no país que o tratamento se institucionalizou. Um dos primeiros programas foi o do bairro social do Casal Ventoso, em Lisboa. Segundo Barbosa, o projeto encontrou pontos de contato com a população usuária de droga, unidades móveis que faziam programas de substituição da heroína e feitos planos integrados de prevenção às drogas entre governo e sociedade civil.

No Porto, outro programa parecido foi desenvolvido em meio ao sentimento de insegurança e exclusão social gerado pelo consumo de drogas nas ruas. Para se aproximar dos usuários, foram colocadas equipes de rua, gabinetes de apoio, centro de acolhimento, programas de troca de seringas e de substituição de droga e rastreio de doenças infecciosas.

A consolidação de programas de trocas de seringa, estima Barbosa, evitou aproximadamente 6.000 infecções cada 10.000 utilizadores de drogas injetáveis, entre 1993 e 2001. Uma economia de 400 milhões de euros em recursos públicos, calcula.

Com o aumento dos casos de Aids e da criminalidade por conta do consumo de drogas, ocorreu o que Barbosa chama de “cientificação” do debate sobre políticas alternativas em relação ao consumo de drogas, em que o governo chama os especialistas a contribuírem para a busca de soluções. Discutiu-se até legalização e criou-se uma proposta de descriminalização, que virou lei após a análise de uma comissão de estudos em 1999. Tudo isso, não sem críticas de que a política era de resignação perante as drogas ou de medicalização do que era visto como um problema de segurança.

Para Barbosa, o país ainda precisa fazer mais, diversificar a atuação e se adaptar às práticas de consumo para reduzir o problema. Ele critica o fato de não haver prescrição de heroína sob controle médico, troca de seringas nas prisões ou criação de salas de injeção assistida. Para Lúcia Dias, a principal dificuldade do atual modelo é conseguir definir as quantidades-limite que diferenciam um consumidor de um traficante. “É muito difícil precisar e especificar esses valores”.

Sem utopia

Sinais de aumento no consumo de drogas entre populações escolares e de um recrudescimento do fenômeno da cocaína mostram que a estratégia portuguesa, se bem sucedida, não é de todo capaz de zerar o problema do consumo de entorpecentes – assim como parece acontecer com a guerra às drogas.

Para Ilona Szabo, que foi também co-roteirista do documentário Quebrando o Tabu, em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso faz um périplo atrás de soluções de redução de dano em relação às drogas, o Brasil precisa ir além do modelo português. O segundo passo é a regulação da maconha. “Como queremos continuar em um modelo burro de proibir drogas conhecidas? O que é proibido não pode ser regulado, precismos experimentar um modelo pragmático”.

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