Psicodélico: Jornal Feira Hoje - Discurso da Deputada Federal Perpétua de Almeida em defesa da Ayahuasca

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Jornal Feira Hoje - Discurso da Deputada Federal Perpétua de Almeida em defesa da Ayahuasca

Jornal Feira Hoje - Discurso da Deputada Federal Perpétua de Almeida em defesa da Ayahuasca


Discurso da Deputada Federal Perpétua de Almeida em defesa da AyahuascaDiscurso da Deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC) no Congresso Nacional Brasileiro, em 29 de março de 2010.


Sr. Presidente, Srs. e Sras. Parlamentares, antes de falar sobre o assunto principal do nosso pronunciamento, quero render minhas homenagens a um acriano, reconhecido no Brasil inteiro como um grande estadista, que morreu na madrugada de hoje, nosso amigo e conterrâneo Armando Nogueira. À família dele a nossa saudação e a certeza de que Armando desempenhou um papel importante para o Acre e para o Brasil inteiro.

Nosso Governador, Jorge Viana, percebendo os problemas de saúde de Armando, já o homenageou dando seu nome a uma das mais belas escolas-modelo do Estado, o Colégio Estadual Armando Nogueira. Esse homem revolucionou o esporte brasileiro e deixa seu legado.

Sr. Presidente, quero aproveitar este momento para prestar minha homenagem a todos os centros e a todas as comunidades ayahuasqueiras do meu Estado. Foi com pesar, com tristeza e às vezes até com revolta que acompanhei setores da imprensa brasileira tratarem de forma preconceituosa a Amazônia brasileira e os seguidores do Santo Daime, da União do Vegetal e da Barquinha.

Para não cometer deslizes ou esquecimentos, fiz questão de, num discurso um pouco mais elaborado, prestar uma homenagem, um pedido de desculpas às famílias dos três precursores do uso do chá da ayahuasca fora dos centros de floresta no Brasil: o Mestre Irineu, o Mestre Daniel e o Mestre Gabriel, criadores do Alto Santo, cujas linhas ficaram conhecidas como Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal.

Neste momento, Sr. Presidente, o seu legado está sendo atacado de forma preconceituosa e descabida. Durante mais de 15 dias saíram artigos em jornais e revistas. O que se viu, diante de uma tragédia urbana, foi a falta de conhecimento de alguns setores da imprensa, inclusive deste Parlamento, e a tentativa de influenciar o pensamento de toda a população, de forma discriminatória, contra a região do País onde nasceu o uso da ayahuasca. Aliás, estamos falando da única religião genuinamente brasileira — e amazônica.

Quero relembrar aqui que o crime que tirou a vida de um artista brasileiro, o cartunista Glauco, foi uma atrocidade, e que não existe nenhum precedente em nenhuma das comunidades ayahuasqueiras do meu Estado, o Acre, nem mesmo do Brasil. De forma vil tentaram fazer do réu uma vítima e da vítima o próprio culpado e sua morte.

Quando a própria família do Glauco afirma de forma incisiva que o algoz que lhe tirou a vida tinha perturbações comportamentais e que não estava mais frequentando com frequência a comunidade, aprofunda a tese de que não há influência do chá nas atitudes extremadas que influíram no seu assassinato.

Lá no meu Estado, Sr. Presidente, onde foram criados os centros que utilizam a ayahuasca há mais de 5 décadas, nunca, em momento algum, presenciamos qualquer crime, qualquer escândalo, qualquer atrocidade. Sequer vimos alguma comoção social oriunda dos frequentadores das comunidades que usam aquele chá, homens e mulheres simples, trabalhadores da agricultura, funcionários públicos, autônomos, gente humilde e ordeira. Os filhos das pessoas que iniciaram o uso do chá hoje são advogados, juízes, médicos, professores, promotores públicos e até Parlamentares e estão todos inseridos no contexto social e cultural acriano. Repito: nunca houve um único caso de desequilíbrio ou atrocidade que levantasse suspeita sobre o uso do chá no meu Estado do Acre. Agora, claro, é preocupante a forma como usam esse líquido sagrado em rituais que não são religiosos. A sua mistura com outras substâncias é um fato e uma preocupação. Nas comunidades indígenas, usuárias da bebida há séculos, não existem distúrbios ligados ao uso da ayahuasca, porque os índios a usam em rituais próprios, como instrumento de se harmonizarem com a natureza e com a espiritualidade. Isso precisa e deve ser considerado como a cultura dos povos da Amazônia.

A nossa Lei Maior define e garante a liberdade de prática religiosa. Essa contribuição, trazida inclusive pela bancada do meu partido, dos comunistas, na Constituinte de 1934, é para garantir que não haja monopólio da fé e que todos possam manifestar sua religiosidade, sua espiritualidade, com a defesa do Estado brasileiro.

Nesse sentido, Sr. Presidente, na busca de regulamentar de forma consensual o uso do chá ayahuasca, é que o Governo do Presidente Lula, através do Conselho Nacional Antidrogas, publicou portaria apontando o norte a ser seguido pelas comunidades que usam o chá.
Ressalto aqui que a resolução é consensual com várias entidades que se comprometem a beber o vegetal, ou daime, em rituais estritamente religiosos.

Essa é a diferença, esse é o tesouro que não faz do chá produzido por duas plantas amazônidas uma brincadeira, ou a busca da curtição, como alguns preferem dizer. Para nós, para os amazônidas e para os usuários do chá, é algo que vai além da sua espiritualidade: é o encontro consigo mesmo.

O Juiz Federal Jair Facundes, de quem tenho a honra de ser amiga e que é uma das pessoas mais respeitadas no meu Acre, publicou recentemente um belo artigo. Aqui relembro um trecho do seu artigo que diz o seguinte:
Enquanto construção humana a ayahuasca reflete a velha questão que diz respeito a considerar, ou não, se a realidade se exaure na exata composição física e química. A ayahuasca, enquanto elemento religioso, é bem mais, muito mais, do que a folha Psycotria viridis, o cipó Banisteriopsis caapi e água, fervido ou não: são aqueles elementos acrescidos de uma constelação de pequenos atos, sentimentos, posturas, crenças, hábitos, detalhes que emprestam significado e valor a símbolos, objetos, natureza, plantas, permitindo a experiência religiosa humana no que de mais profundo e transcendente isto representa.

Como percebemos, Sr. Presidente, dissociar o uso religioso da ayahuasca contraria os preceitos da doutrina trazida pelos nossos grandes mestres e responsáveis originários: Mestre Irineu, Mestre Daniel e Mestre Gabriel, que nos ensinaram que as atitudes se diferenciam, junto com a questão religiosa, de qualquer outra prática.

Nobres colegas, entretanto, faz-se necessário que haja um estudo acadêmico, que a comunidade científica e autoridades médicas se posicionem e conheçam as características e as influências que a bebida causa aos seus usuários. Nada mais justo, necessário e precioso. Neste caso específico, tanto a União do Vegetal, como o Alto Santo e a Barquinha fazem questão de que haja pesquisa e haja estudos nesse sentido.

Em nenhum momento se viu qualquer uma das autoridades dessas comunidades ayahuasqueiras se posicionando contrariamente a quaisquer pesquisas que sejam necessárias, porque nós achamos importantes e necessários os estudos e as pesquisas, porque é dessa forma que as pessoas falam e se posicionam com conhecimento de causa.

Para isso, o Governo brasileiro já incentiva e edita o seu reconhecimento. Nessa mesma argumentação, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América aprovou, por total unanimidade, a liberação da ayahuasca naquele país. Essa decisão é uma contestação irrefutável do quanto é certa a postura do Governo brasileiro, do quanto é certa a postura das pessoas comprometidas com o uso da ayahuasca em suas práticas religiosas.
Sr. Presidente, recentemente, Frei Betto, numa das suas publicações, abordou o tema religião e espiritualidade. Argumenta que a espiritualidade é uma dimensão constitutiva do ser humano e que uma pessoa desprovida de espiritualidade prescinde da percepção da profundência de sua subjetividade. Entendo isso quando percebo em meus amigos mais próximos, vários homens e mulheres no Acre e no Brasil que fazem da religião da floresta um jeito bom de viver, a necessidade de manter viva a sua espiritualidade.

E é nesse sentido que me dediquei a requerer que o Ministério da Cultura, através do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — IPHAN, fizesse um estudo e reconhecesse o uso da ayahuascaem rituais religiosos como patrimônio imaterial da cultura brasileira.

Acho mais do que justo esse reconhecimento, porque é a única religião genuinamente brasileira, nascida na floresta amazônica, que precisa e merece ser reconhecida como um patrimônio imaterial do povo brasileiro.Esse reconhecimento, com o devido respeito e defesa de todas as práticas e de outras religiões, é uma demonstração de que o nosso Brasil é realmente de todos. Sendo este o mote e a política de Governo implementada pelo Presidente Lula, temos o dever de também reconhecer a religião da floresta como uma prática cultural nascida no seio da floresta, nascida em nosso país.

Ressalto aqui que, paralelamente a essa nossa proposta, o Governo peruano já faz esse reconhecimento da ayahuasca como patrimônio imaterial do Peru.

O Estado do Acre, através das fundações culturais do Estado e da Capital Rio Branco, já tem em suas ações o reconhecimento e incentivo dessa prática religiosa. São inúmeros os centros que utilizam o chá; o Alto Santo é tombado como patrimônio do Estado, o Poder Público criou uma Área de Proteção Ambiental no entorno de vários templos, onde se usa a ayahuasca como ritual religioso.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Parlamentares, O Deputado Estadual Moisés Diniz, Líder do Governo acriano, também do PCdoB, num brilhante artigo recém-publicado, afirma que a utilização da ayahuasca pelo homem branco é uma acolhida da espiritualidade das florestas tropicais, um banho de rio milenar e sentimental do tempo em que os povos amazônicos viviam em fraternidade econômica e religiosa. Diz ainda que o líquido, usado com objetivos espirituais, envolve a mais límpida tradição de amar o próximo e reencontrar os valores que perdemos na caminhada do planeta que se dividiu em castas, cores, fronteiras e etnias.

É desta forma como o Deputado Moisés Diniz aqui se expressou que nós, acrianos e amazônidas, nos relacionamos como o uso da ayahuasca. E é nesse contexto que a Organização das Nações Unidas, em resolução de 1961, reconhece o uso de plantas psicoativas em rituais religiosos. Várias nações são signatárias desse reconhecimento.

Lembro aqui também as palavras do General Uchôa, que iniciou no CONAD os estudos da ayahuasca. Suas palavras são contundentes quando afirma em entrevista numa rádio que o chá é inofensivo à saúde quando não é misturado com outras substâncias que alteram o funcionamento do organismo.

Reitero que não podemos, sob hipótese nenhuma, permitir a criminalização de uma prática religiosa que se constitui como manifestação genuinamente brasileira e de forma gradual e respeitável se consolida em vários Estados brasileiros e em outros países.

Devemos, sim, firmar concordância com o que a resolução do CONAD aponta. Garantir que a bebida sagrada não seja comercializada, que seja usada estritamente em rituais religiosos e não seja misturada com outras substâncias proscritas.

Sr. Presidente, tenho profundo respeito, e, assim como eu, o povo de meu Estado tem profundo respeito pelas lideranças do Alto Santo, da Barquinha e da União do Vegetal. Todos eles inclusive têm vários centros, tanto na capital como em vários municípios do Acre.

A Madrinha Peregrina, pessoa simples e cativante, trabalha com dedicação e afinco para dar esperança e conforto às centenas de pessoas que lhe procuram. Viúva do Mestre Irineu, constitui-se como uma referência espiritual, uma liderança do povo acriano. É uma senhora que criou seus filhos, inclusive os de coração, com um brilhantismo que é exemplo para muitas mães em nosso Estado. Amável e, ao mesmo tempo, austera quando precisa, orienta para que os signatários do Alto Santo e do Santo Daime sejam respeitosos e se comportem bem na sociedade do Acre e do Brasil inteiro.

Relembro Toinho Alves e Altino Machado, jornalistas de grande prestígio no meu Estado, que se firmam com as palavras dessa grande mulher, madrinha Peregrina, quando fazem a defesa do Santo Daime.

Vejo também no meu Acre, uma liderança jovem, Francisco Araújo, uma pessoa carismática. Sendo o responsável pela Barquinha, orienta, afaga e dá esperança a quem o procura. Tem em volta de si pessoas simples, profissionais das mais diversas áreas. É um grande acriano que tem contribuído para que o respeito e o uso sério do chá ayahuasca seja uma constante no nosso Estado, no Brasil e no mundo.
Refiro-me ainda à irmandade da União do Vegetal e à Mestre Pequenina, amazônida, mulher guerreira que enfrentou os desafios da floresta junto com o seu esposo, Mestre Gabriel.

Esse exemplo de mulher, junto com a direção da UDV, faz com que os discípulos que estão em todos os Estados brasileiros, na América do Norte e na Europa sigam a orientação do grande criador daquele centro.

Tenho ainda, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Parlamentares, meus padrinhos de batismo — tanto o padrinho Gaim, como a madrinha Maríades — , que lá em Porto Walter, quando fui batizada na Igreja Católica, me acolheram como filha. A eles, ao Edson Lodi, ao Edson Saraiva, uma das autoridades da medicina e meu médico, e aos inúmeros amigos que tenho no Acre, dedico este pronunciamento desta tribuna do Congresso Nacional.

Continuem e sigam em frente, porque foi em busca dessa liberdade de credo que sempre nós, comunistas, e o povo brasileiro lutamos.

O exemplo dado pela natureza — desde a mais robusta sumaúma até a mais simples planta na floresta, ao canto dos pássaros e ao nadar dos peixes — afirma que é válido e honroso lutar por dias melhores e garantir o inalienável direito de construírem uma espiritualidade onde o amor e o respeito ao próximo sejam práticas quotidianas.

Por fim, tomo emprestada uma frase do Toinho Alves, um hoasqueiro de fino trato, um poeta lá do meu Acre, que diz:
Nós, que habitamos as cabeceiras dos rios da Amazônia, podemos mostrar ao mundo que bebe nossas águas o quanto é válido e necessário nos desenvolvermos com a natureza e constituirmos uma nova prática de vida. Seja a florestania, o jeito de viver na floresta, a prática desse novo milênio.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Parlamentares, eu esperei alguns dias para fazer este pronunciamento, colocando o uso religioso da ayahuasca no meu Estado e em alguns outros centros brasileiros como referência da minha sociedade, lá da nossa comunidade e de nosso pequeno Acre.

Sou católica, mas respeito as diversas religiões, sou defensora dos diversos credos. Não sou usuária do chá, mas tenho a responsabilidade, acriana e amazônida que sou, de vir a esta tribuna prestar a minha homenagem aos centros existentes no Acre e aos diversos centros no País e no mundo. O Brasil já superou a fase em que os comunistas eram perseguidos por defenderem o PCdoB, o PCB e outros partidos comunistas da época.

Acredito também que o Brasil já superou a fase em que os usuários da ayahuasca eram discriminados, maltratados e inclusive presos. Lá no Acre, existe uma escola pública na comunidade da Barquinha, porque, há pelo menos 40, 50 anos, os filhos de usuários do chá ayahuasca sequer podiam frequentar as escolas públicas, porque eram ali discriminados, e os pais buscaram uma forma de educá-los.
O Estado do Acre reconhece ali uma escola que esteve a serviço da educação, de bem orientar o nosso povo. Naquele centro — além de ser um centro histórico, como o de Alto Santo e de algumas comunidades, a exemplo da União do Vegetal — , existe aquela escola que serve à comunidade acriana.

Hoje, as comunidades do uso da ayahuasca no Acre convivem pacificamente com as demais comunidades religiosas do meu Estado. Este é o nosso desejo: a busca de liberdade de credo.

Por isso, Sr. Presidente, volto a dizer, amazônida que sou — inclusive por ter o privilégio de ter centenas de amigos nas comunidades usuárias do chá, alguns que trabalham diretamente conosco, muitos que pertencem ao meu partido, o PCdoB — , senti-me na obrigação de vir aqui prestar a minha homenagem, o meu respeito e o meu reconhecimento aos usuários do chá ayahuasca.

Continuarei a lutar neste Congresso para que o Ministério da Cultura, por meio do IPHAN, reconheça o uso religioso da ayahuasca como única religião genuinamente amazônida e que ela seja reconhecida como patrimônio imaterial do povo brasileiro. O mínimo que se pode fazer hoje é o reconhecimento dessa religião e dessas comunidades religiosas.

Sr. Presidente, não podemos de forma desrespeitosa e preconceituosa achar que os atos de pessoas com problemas psicológicos, como é o caso do assassino do nosso amigo Glauco, sejam ligados ao uso da ayahuasca. Não podemos tratar a situação dessa forma. Há de se respeitar a forma correta como se utiliza o chá nas comunidades religiosas não só do Acre, mas de muitos centros urbanos do País.

Em nome do Francisco, da Mestra Pequenina, da Madrinha Peregrina, presto minha homenagem e, ao mesmo tempo, deixo registrado o meu respeito a todos os usuários da ayahuasca em qualquer da Amazônia brasileira, em qualquer lugar deste Brasil ou deste planeta.

Que essa grande irmandade esteja entre todos eles, entre todos nós, e que o respeito e a liberdade de credo sejam o nosso marco e o nosso guia.

Muito obrigada.

(Obs.: texto sem revisão da oradora.)

Um comentário:

Enteo disse...

salve! inclui teu blog no

http://enteogenos.org/blog/soma

isso significa que os posts novos do teu blog vao ser listados como chamadas lá.

abs